Já tinha os visto cantar antes, mas estavam diferentes. Os dois adolescentes ingleses, sem idade para beber e mesmo assim pequenas estrelas da noite, se transformaram em quatro crianças, vestidas como bonecos de caixinha de música. Daqueles que o fabricante parece ter idealizado somente com a ajuda de um compasso: joelhinhos bola, bochechas rubras acentuadas, grandes esferas representando os olhos e até cotovelos especialmente arredondados. Perdi a noção de gênero – não sei se quatro meninos ou meninas ou dois casais. Quanto à altura, formavam uma escadinha com brusca diferença em relação ao mais novo, um bebê de colo. Não me perguntem, não entendo como ele fazia um backing vocal tão genial, mas fazia.
Assistia ao espetáculo sentada em uma mesa de tampo de vidro, onde apoiava quase todo meu corpo. Ao meu lado, um novo namorado, não sei quem, não sei como. Lembro de cabelos encaracolados e da mania de imitar meus gestos. Seria isso amor? Cheirava mal, talvez o motivo porque eu escolhera guardar as minhas mãos ao invés de apertar as dele. A música nos agradava. Ao nosso redor, todos os meus amigos; sabia-o mesmo sem poder olhar os rostos de cada um. O ambiente estava escuro exceto por uma clareira à frente do palco, onde ninguém sentava nem passava. Os quatro irmãos cantavam no breu. Através da cortina de luz, notava só o movimento das bochechas vermelhas.
Tocaram minhas músicas preferidas. Em “Leite azul-selvagem”, a criança mais nova me arrepiou liderando um belíssimo coro. Chorei com “Desistindo do amor”. Cogitei encostar no novo namorado em “TV de Natal”. Terminaram o show com “Sala do troféu”, em que a plateia participou batendo palmas tal qual em música pop dos anos 60.
Fui cumprimentar o quarteto após o show. Meigos, tímidos e excitados com a apresentação, os quatro irmãos contaram os planos da turnê pela América do Sul. Iriam a Buenos Aires, Santiago e Montevidéu. Mas o agente tinha desistido de acompanhá-los. Naquele segundo, uma centelha iluminou meu coração – sim, lá mesmo senti o brilhantismo da ideia. Como deixar um bebê de colo partir em uma turnê aos cuidados de uma criança de no máximo sete anos? Um talento em risco! Adotaria o mais novo da banda.
Para minha surpresa, não houve resistência de parte dos irmãos. Os três ficaram aliviados por deixar o fardo comigo – a criança pesava 25 kg.
* * *
Eu o levava junto a mim, sempre. Não me importava que a criança mal coubesse nos meus braços fazendo-nos um arranjo desajeitado – cientes de nossas dimensões, incapazes de lidar com elas. Perdera a centelha, esquecera da epifania. Meu filho adotado, ou filha, parara de cantar. Mal dormia, mas comia e sujava as fraldas como ninguém.
O namorado de então desaparecera. Lembro-me do incômodo de carregar o peso morto, mudo – o fardo. Não me lembro de sentir a partida do namorado. Talvez tenha ido em uma das noites que passei limpando fraldas, vestindo o bebê com outras novas – faltava-me dinheiro para comprar fraldas descartáveis. Minhas mãos fediam. Só parava para notá-las diante do tanque, ensaboando, enquanto me punia. Marrom, era a cor que via.
Dia desses fomos ao shopping. Segurava-o junto ao peito. Pouco depois de chegarmos, mal tinha olhado vitrines, começou a tempestade. Impassível, defecava. A massa marrom logo transbordou os limites da fralda e meu reflexo foi agarrá-las como um goleiro na hora do pênalti. Mas minhas mãos pequenas não eram o suficiente. Ele continuava. E, do colo, olhava fixamente para os meus olhos.
Eu não queria que me vissem com aquilo nas mãos – que tipo de mãe era eu? Engoli. Engoli todo o marrom. Engoli. Engoli. Descobri que minha boca, ao contrário das mãos, podia acomodar tudo o que aquela criança me desafiasse a fazer. Na primeira bocada, cheguei ao mais baixo da minha dignidade. Talvez por isso a segunda mordida me tenha sido tão prazerosa. Já não tinha mais como perder. Ele desviou os olhos, mas eu mantinha os meus fixos na nuca dele. Que venha mais, que toda a tua sujeira cabe em mim, sussurrava. Tinha os lábios sujos, as mãos também. Era como se aquele ser maciço branco de face vermelha se desintegrasse em outras dezenas de quilos, de forma que eu enfim pudesse pagar a pena.
Perto do fim, desejei retardá-lo. Procurei um fraldário. Não tinham placas. Queria perguntar para vendedoras, guardas, qualquer um que caminhasse pelo shopping. Mas tinha a boca cheia. Num lapso de racionalidade, despejei tudo nas mãos. Descobri que a saliva engrossara a massa, o que me permitia carregá-la mais facilmente. Perguntei a uma vendedora sobre o fraldário. Ela não percebeu o bebê. Apontou para a direita, disse no final do corredor e continuou observando as luminárias do shopping. Devolvi à minha boca o que lhe era de direito.
Andei. Fiz como me indicaram. Não encontrei qualquer sinal de fraldário ou banheiro. A lógica dos shoppings centers, elaborada à custa de muita padronização, indica que os lavatórios estão sempre perto da praça de alimentação – quando no último piso ou no térreo – e nos andares intermediários, perto da escada rolante. Os fraldários, que exigem mais espaço, geralmente estão junto ao banheiro maior, o da praça de alimentação. Segui a lógica. Cheguei ao último andar, mas nada havia. Distraída no exercício de engolir e cuspir antes de perguntar sobre o fraldário para qualquer um que passasse, fui perdendo campo na batalha. O bebê não parava. O cheiro ardia minhas narinas. Ele se mantinha impassível, mirando os meus olhos com um ódio mudo. Da fralda já encardida, transbordava a massa marrom. Eu engolia. O fraldário parecia a última esperança. O fraldário não existia. Eu engolia, engasgava. Depois devolvia tudo às mãos, pedindo ajuda.
terça-feira, dezembro 22, 2009
terça-feira, novembro 24, 2009
2031, um café
Vinte e dois anos depois. Combinamos um café na Guatemala – café forte. O cabelo encaracolado que antes lhe apertava o escalpo agora deslizava, com percalços, pelos ombros. Ainda usava óculos, pois que lhe era difícil enxergar no escuro. A ponto de, mesmo reticente ao contato físico, agarrar-me a mão dentro de um bar claustrofóbico. Deixara de comer carne e tomar leite. Meditava todas as manhãs.
Eu trazia a vela, uma promessa. Meus cabelos estavam mais curtos, ralos. Minha visão desdenhava do tempo. Não me apegara ao esoterismo, decidi voltar às raízes e dedicar-me ao catolicismo. Fiz amizade com o padre da paróquia. Eu o ajudava a comprar as velas, dirigia a camionete com centenas na caçamba. Buscava paralelos com a promessa. Mantinha-o perto de mim, mantinha-me em volta de velas.
Alcancei-o primeiro. A calma da meditação não amenizava o nervoso: batucava os dedos na mesa, jogava o cabelo para trás, olhava para o céu vermelho do fim de tarde. Não me viu até que toquei na cadeira à frente dele. Na verdade, primeiro viu a chama. Sorriu como em 2009, sorriso privilegiando as gengivas.
Ele fazia 50 anos. Na testa, notei as marcas da expressão curiosa da juventude sem que ele tentasse me mostrar. Conseguia vê-lo indagando o mundo no intervalo de duas décadas. O exercício de nos imaginarmos, cada um num hemisfério, expandia os poucos encontros de um verão distante.
Eu tentava aceitar a meia-idade. Escondera os braços em uma blusa de manga, ainda que fizesse calor. Afundei os óculos escuros no rosto para disfarçar as rugas. Caso ele ainda me imaginasse jovem.
Tocava música antiga, cantada em inglês. Um aparelho de CD repousava ao lado do caixa. Fazia menos barulho do que as pessoas. Ninguém se dava ao luxo do silêncio. As ondas batiam forte, acrescentando o tom grave à cantoria.
Sorri em resposta às gengivas.
Eu trazia a vela, uma promessa. Meus cabelos estavam mais curtos, ralos. Minha visão desdenhava do tempo. Não me apegara ao esoterismo, decidi voltar às raízes e dedicar-me ao catolicismo. Fiz amizade com o padre da paróquia. Eu o ajudava a comprar as velas, dirigia a camionete com centenas na caçamba. Buscava paralelos com a promessa. Mantinha-o perto de mim, mantinha-me em volta de velas.
Alcancei-o primeiro. A calma da meditação não amenizava o nervoso: batucava os dedos na mesa, jogava o cabelo para trás, olhava para o céu vermelho do fim de tarde. Não me viu até que toquei na cadeira à frente dele. Na verdade, primeiro viu a chama. Sorriu como em 2009, sorriso privilegiando as gengivas.
Ele fazia 50 anos. Na testa, notei as marcas da expressão curiosa da juventude sem que ele tentasse me mostrar. Conseguia vê-lo indagando o mundo no intervalo de duas décadas. O exercício de nos imaginarmos, cada um num hemisfério, expandia os poucos encontros de um verão distante.
Eu tentava aceitar a meia-idade. Escondera os braços em uma blusa de manga, ainda que fizesse calor. Afundei os óculos escuros no rosto para disfarçar as rugas. Caso ele ainda me imaginasse jovem.
Tocava música antiga, cantada em inglês. Um aparelho de CD repousava ao lado do caixa. Fazia menos barulho do que as pessoas. Ninguém se dava ao luxo do silêncio. As ondas batiam forte, acrescentando o tom grave à cantoria.
Sorri em resposta às gengivas.
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